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Mafalda Infante

Estudante Universitária e Activista

Cultura e Direitos Humanos: conflitos e soluções

O respeito pela diversidade cultural, soberania e autodeterminação dos povos são considerados por muitos alguns dos maiores obstáculos à Proteção Universal dos Direitos Humanos.

Desde que a Organização das Nações Unidas, em 1948, adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, muitos foram os desafios decorrentes daquele que se pode chamar um conflito entre diversidade cultural e universalização dos Direitos Humanos.

De facto, a conceção de Direitos Humanos que temos nos dias de hoje é fruto de uma visão específica da sociedade, que brota com a Revolução Francesa e se expande para outros países, universalizando-se.

No entanto, quando os Direitos Humanos, considerados universais, se deparam com valores e culturas locais muito específicos e que vão contra os mesmos, ambos os lados entram em colisão, pelo que caímos numa antinomia.

Para exemplificar a relação conflituosa entre estas duas forças contrárias, será pertinente recorrer à prática da Mutilação Genital Feminina (MGF). A questão que se coloca é a seguinte: Como devemos agir perante este tipo de práticas que, apesar de culturais, colocam flagrantemente em causa os Direitos Humanos e, neste caso, o direito de 3 milhões de mulheres por ano (8 mil por dia) em todo o mundo?

A mutilação genital feminina consiste na remoção ritualista total ou parcial dos órgãos genitais externos femininos e está essencialmente associada a questões sociais e culturais, religiosas e até mesmo económicas, uma vez que as pessoas que põem em prática este ritual, recebem rendimentos que são o seu sustento. É muito comum em países da África e Ásia, tendo sido disseminada por comunidades migrantes que a praticam noutros continentes. As consequências, físicas e psicológicas, desta prática são nefastas para jovens e adultas que por ela passam. No entanto, os números indicam que esta situação tende a aumentar ano após anos.

De facto, esta prática viola flagrantemente a Declaração Universal dos Direitos Humanos em vários dos seus artigos, no que diz respeito ao direito à vida, ao direito à segurança pessoal ou à proibição da tortura. No entanto, se o Sistema Internacional de Proteção de Direitos Humanos condena a prática destes atos, afirma também o respeito pela diversidade cultural e expressões da mesma.

Neste sentido, estamos perante aquilo que pode ser considerada como uma expressão de determinada cultura, mas que põe em causa princípios de direitos humanos, normas jus cogens de Direito Internacional.

Neste contexto, que se mostra cada vez mais preocupante, há que referir o papel das organizações. De facto, estas desempenham uma ação fundamental, não apenas na resolução destes problemas, mas também na sua prevenção. Explicar a pessoas que sempre viveram envolvidas nas suas tradições culturais, que estas deveriam ser abolidas, uma vez que prejudicam gravemente a saúde, pondo mesmo em risco a vida das vítimas, é um desafio bastante complexo.

Por esta razão, esta deve ser uma intervenção cautelosa e construtiva, que deve ter em conta o contexto social com o qual está a mexer, não querendo, de forma alguma, impor visões culturais e sociais que nada têm a ver com as destas comunidades. É neste sentido que surge a importância dos mediadores culturais, pessoas que, pertencendo à comunidade em questão, recebem formação para que possam, junto dos seus, fazê-los compreender a gravidade das consequências dos atos “culturais” que praticam. É também neste sentido que é fulcral a prática da Educação para os Direitos Humanos como forma de prevenção e resolução destes problemas: de facto, verifica-se que nos países onde a educação passa também por falar de questões relacionadas com direitos humanos, as suas violações recorrentes e formas de prevenção, estes problemas são muito menores. A intervenção das organizações perante este e outros flagelos tem sido fulcral no combate aos mesmos, sendo que é necessário que se continue a abordar governos, assim como líderes religiosos e comunitários, com vista a desmistificar certas práticas e fazendo compreender o quão prejudiciais elas são.

Acima de tudo, estas são mudanças que levam tempo e requerem métodos inclusivos e democráticos, de empoderamento, e jamais imposições sobre qualquer tipo de visão cultural. A importância do diálogo com estas comunidades e de alcançar soluções e alternativas viáveis para que as suas tradições culturais sejam respeitadas em si, mas também respeitadoras dos direitos humanos, é imprescindível.

O conflito entre cultura e proteção dos direitos humanos pode ser, em muitos casos, bastante complexo, mas não é, de todo, impossível de resolver. Apesar do respeito pela diversidade cultural dever ser inquestionável, há que compreender que a cultura é mutável, suscetível de ser transformada à medida que as sociedades evoluem. Para além disso, e uma vez que certas práticas culturais colocam em causa o núcleo duro de direitos humanos, inquestionáveis, não podemos aplicar um relativismo cultural sem nos questionarmos sobre a violência que é imposta, no caso da MGF, a mulheres vítimas de uma visão patriarcal da sociedade.

Neste sentido, o segredo poderá estar em informar, educar e prevenir, capacitando as várias comunidades para agirem em defesa dos seus direitos, sem impor visões culturais dogmáticas, mas esclarecendo sobre as consequências dramáticas de algumas práticas e sugerir possíveis alternativas às mesmas.

É verdade que falar em cultura é falar numa complexidade de fenómenos e práticas. No entanto, a cultura deve ser veículo de libertação e transformação, jamais de opressão, pelo que, também através desta, se possam construir tradições mais justas, nunca abdicando da identidade cultural de cada comunidade, mas melhorando-a, transformando-a e tornando-a mais amiga dos Direitos Humanos e de cada um de nós.

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