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Miguel Fernandes Enfermeiro, Investigador em Políticas de Saúde

Desigualdades em Saúde: Um Problema Sistemático com Respostas Desintegradas

A desigualdade entre classes sociais é algo tão antigo como o próprio conceito de sociedade. Do socialismo cristão até ao manifesto comunista, diversas foram as tentativas infundadas de criar sociedade igualitária. No entanto, a era do capitalismo moderno e globalizado espelha, mais que nunca, estas disparidades.

Ainda assim, as políticas de justiça social têm manifestado uma preocupação crescente dos governos contemporâneos. Altamente influenciado pelas questões da igualdade racial e de género, o combate às desigualdades sociais tem marcado a agenda política nacional e internacional. Tais esforços têm promovendo melhorias efetivas nas últimas décadas, em questões como a erradicação da pobreza ou a conquista de direitos pelas mulheres. Contudo, estas diferenças permanecem ainda assim como um problema transversal e particularmente significativo.

Um Flagelo (Demasiado) Continuado

 

A saúde é uma das áreas onde nos deparamos com a realidade da desigualdade social. As desigualdades em saúde são diferenças sistemáticas no nível de saúde e/ou no acesso a recursos de saúde entre grupos de população que se diferenciam por características sociais. Estas diferenças são injustas e têm um impacto social e económico significativo, tanto para os cidadãos como para a própria sociedade. Trata-se de um problema à escala planetária: estima-se que por dia morram cerca de 16 000 crianças com menos de 5 anos de idade por causas evitáveis, como pneumonia, malária ou desidratação – a probabilidade de morrerem destas causas é 14 vezes superior se a criança viver em África em comparação com o resto do mundo 1’.

No entanto, é um fenómeno que se repercute de forma igualmente drástica dentro dos próprios países: em Londres, as crianças oriundas dos 20% mais pobres da população têm, em média, o dobro da probabilidade de falecer antes dos cinco anos de idade que as crianças provenientes dos 20% mais ricos da mesma população. Cada estação de metro que se viaje, de Westminster para a periferia, representa aproximadamente 1 ano de esperança média de vida à nascença perdido, para aqueles habitantes. 2’

 

As desigualdades em saúde ocorrem por condicionantes internos e externos ao próprio Sistema de Saúde. Fatores de origem social, como o nível de ensino, emprego, rendimento, género ou raça, poderão ter uma influência direta ou indireta no estado de saúde ou capacidade de aceder à saúde. Estas diferenças entre grupos sociais ocorrem transversalmente, em todos os países. Portugal não é exceção. De modo geral, a implementação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) na década de 70 permitiu o acesso de milhões de pessoas a cuidados de saúde de qualidade, o que terá influenciado positivamente os indicadores de esperança de vida, já sobejamente conhecidos.

 

No entanto, o país apresenta assimetrias em saúde de acordo com o nível de rendimento e/ou de educação, principalmente nos indicadores que refletem qualidade de vida, como os anos de vida saudáveis. Os dados demonstram que, ainda que a população mais pobre tenha melhorado os seus índices de saúde, consequência da melhoria global sentida, o nível de disparidade face aos mais ricos não diminui, tendo mesmo piorado no período de crise macroeconómica 3’

 

 

Erradicar as Desigualdades em Saúde em Portugal: Causas, Origens e Possíveis Soluções

 

As desigualdades em saúde são um problema multifatorial de enorme complexidade. Tal facto, leva a que a sua solução seja muitas vezes encarada como utópica, e ainda que o seu combate surja na agenda política, a intervenção restringe-se sobretudo à aplicação de políticas pontuais e desagregadas, que focam a sua ação sobretudo no acesso e restruturação da oferta de cuidados de saúde. Por outro lado, existe ainda uma corrente ideológica que encara este fenómeno como um problema “menor”, argumentando com a melhoria global dos índices de saúde e acesso, ou com a maior desigualdade sentida no acesso a outras áreas, como a educação, emprego ou justiça. Este é um mito fundamental de erradicar. As desigualdades em saúde em Portugal são um problema grave, antes de mais porque, seja qual for a sua magnitude, elas atentam contra um direito constitucional: o direito à saúde (artigo 64º) - o qual o Estado tem o dever de promover e. proteger. Noutro prisma, a desigualdade social em áreas paralelas (como educação, justiça, rendimento, etc.) impacta diretamente na saúde dos indivíduos, assim como o contrário também ocorre (desigualdade na saúde potencial desigualdade no rendimento, por exemplo), pelo que a temática das desigualdades sociais deverá ser analisada antes demais numa perspetiva mais abrangente, na qual se inclui a saúde das populações.

 

O rendimento permanece de forma sistemática como o maior fator de desigualdade social. Em matéria de saúde, esta desigualdade reflete-se sobretudo no acesso a bens e serviços. O período de recessão económica levou a que a disparidade entre ricos e pobres aumentasse, com os primeiros a poderem aceder a cuidados de saúde privados com maior facilidade, face a um serviço público em degradação face às restrições orçamentais.

Nesse sentido, o Estado deverá definir uma estratégia de combate às desigualdades em saúde que contemple políticas que abordem a desigualdade de rendimento e descriminem positivamente os mais vulneráveis, de modo a permitir aceder em igualdade de circunstâncias a cuidados de saúde. Isto deverá passar sobretudo pelo reforço da capacidade do SNS, mas também por outro tipo de medidas, como políticas tributárias e ficais, que permitam por exemplo maior progressividade nas deduções à coleta de IRS, especificamente em matéria de despesas em saúde e literacia. A prossecução de medidas de caráter tributário para premiar hábitos saudáveis e punir hábitos prejudiciais à saúde, na senda das taxas do tabaco ou da “fast-food”, poderá ser outra medida com impacto significativo para a saúde pública. Por exemplo, uma discriminação tributária positiva em alimentos ou recursos promotores de saúde, como ginásios ou serviços de terapias e bemestar.

 

A promoção da mobilidade social através do ensino poderá ser outra estratégia política com impacto significativo no combate às desigualdades sociais como um todo. O acesso universal e gratuito ao ensino superior e o aumento de apoio a despesas com material escolar às famílias (indexado ao rendimento escolar dos alunos) são exemplos de medidas de promoção da literacia e mobilidade social, que poderão originar um retorno exponencial do investimento por parte do estado, através do potencial de crescimento económico e minimização das disparidades sociais. Recorde-se que Portugal é o país onde o impacto da escolaridade na saúde é maior que a média da UE28, em valores próximos aos países do Leste Europeu.

A promoção da literacia em saúde deverá ser outra prioridade estratégica para o combate as desigualdades sociais. É necessário estimular a maior inclusão de conteúdos de promoção da literacia em saúde nos programas curriculares, principalmente nos primeiros anos de escolaridade. A baixa literacia em saúde é, efetivamente, uma lacuna no nosso país, sobretudo nas classes sociais mais baixas. Os portugueses têm, de modo geral, dificuldade em saber como, quando e onde recorrer em matéria de saúde. É no sentido de colmatar esta lacuna que foi desenvolvido o Programa Nacional de Educação para a Saúde, Literacia e Autocuidados, que é também uma expressão da intenção do Programa do XXI Governo em reforçar o papel do cidadão enquanto agente principal no sistema de saúde português, através de uma estratégia focada na informação e conhecimento de suporte à decisão.

 

Ainda que a intervenção direta do sistema de saúde nesta problemática seja limitado, ele desempenha uma função relevante, no sentido em que se constitui como um mecanismo para minimizar estas desigualdades. Esta missão não tem sido, contudo, de todo atingida. O acesso a cuidados de saúde não é socialmente equitativo. O modelo de financiamento das unidades de saúde, centrado na produção e resolubilidade, é em parte uma das causas deste problema, uma vez que não capacita os mais vulneráveis a gerir adequadamente o seu processo de saúde e doença, resultando em maior recorrência a cuidados de saúde urgentes, fora do tempo útil, maior morbilidade e dependência, menor autonomia e capacitação para o autocuidado.

O SNS desempenha neste sector um papel determinante: sendo o garante do serviço universal de saúde no país, deverá ser ele o veiculo impulsionador de disrupção das desigualdades em saúde, através do seu modelo de cuidados e de acesso. Um modelo de financiamento de unidade de saúde diferente, que se centre na valorização dos resultados em saúde e no percurso do utente, com impacto na qualidade de vida ao invés da produção clínica, poderá, por ventura, influenciar as organizações a mudar o paradigma de cuidado para um mais adequado à galopante realidade demográfica, de uma população envelhecida e com multimorbilidade.

Conclusão: Desigualdades em Saúde - Uma Realidade Complexa com uma abordagem integrada

As Desigualdades em Saúde são diferenças sistemáticas na saúde e no acesso a recursos de saúde das populações, que são evitáveis e socialmente injustas. Este problema deverá ser encarado como um fenómeno com impacto global, em termos económicos e sociais, cuja erradicação deverá ser prioridade de todos os governos e entidades públicas de saúde.

Combater as desigualdades em saúde requer uma abordagem sistémica, que englobe intervenções políticas no âmbito económico, social, educacional e do sistema de saúde, para capacitar os mais vulneráveis e excluídos a aceder aos recursos para que desenvolvam a sua em igualdade de circunstâncias com os grupos de nível socioeconómico mais elevado.

 

A resolução desta problemática passa pela criação de uma estratégia global de combate às desigualdades em saúde, integrada numa estratégia de combate à desigualdade social como um todo, que integre medidas de estimulação da mobilidade social através da promoção da literacia e desenvolvimento económico e medidas de proteção social e discriminação positiva no acesso à saúde.

 

Portugal tem no Serviço Nacional de Saúde uma ferramenta estratégica para combater as desigualdades em saúde, que deverá reforçar. Repensar e reformar o modelo de financiamento das unidades de saúde e promover a literacia serão dois caminhos prováveis para atuar na erradicação deste fenómeno

Referências

 

1’ Levels and trends in child mortality. Estimates developed by the UN inter-agency group for child mortality estimation, 2011 Report

 

2’ http://tubecreature.com/#/livesontheline/current/same/U/*/TFTF/13/-0.1000/51.5200/

 

3’ Observatório Português do Sistema de Saúde. Relatório da Primavera: Saúde: Procuram-se novos caminhos. OPSS 2016

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