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Beatriz Alves da Silva

Advogada estagiária e Activista

Por trás do véu: o símbolo de opressão ou liberdade

“Quando temos medo, perdemos toda a noção de análise e reflexão. O medo paralisa-nos. Ademais, o medo sempre foi a força compulsória por trás de todas as ditaduras. Descobrir o cabelo ou usar maquilhagem transformaram-se em actos de rebelião.” Marjane Satrapi in Persepolis, 2000

 

O véu tem sido representado como um símbolo de opressão do sexo feminino na cultura islâmica e é o centro de acesas discussões ideológicas no que concerne à sua obrigatoriedade.

É por esta razão que o protesto de vinte e nove mulheres no Irão, presas após retirarem o véu e o terem pendurado num pau, em sinal de rebeldia contra a obrigatoriedade do hijab, assume tanta relevância. São mulheres a quem foi negada uma voz e uma escolha que para as ocidentais é um direito adquirido: vestirem-se como desejam. Representa um passo em diante, pela coragem de soltarem os cabelos e amarrarem o símbolo que tanto as oprime perante o olhar dos opressores, apesar de viverem num país onde a mulher é punida pelas próprias escolhas e considerada indecente pela demonstração da sua beleza.

Contudo, apesar da utilização do véu ser obrigatória desde 1979, o Alcorão não prevê nenhuma punição às mulheres que não o usem nem especifica se a mulher se deve cobrir com um simples lenço ou com uma mais repressiva burka – o objectivo do véu seria o recato e a protecção contra o assédio masculino. A obrigatoriedade surgiu com a revolução islâmica, algo que é representado no livro autobiográfico “Persépolis”, em que é descrita a forma como o regime instigava as mulheres a não saírem de casa sem se cobrirem e a não questionarem a sua liberdade de escolha.

A utilização do véu não é apenas uma forma de repressão contra o sexo feminino no Irão, mas também um combustível que persuade o racismo e o medo sobre os islâmicos em países ocidentais, principalmente depois dos ataques terroristas.

Neste sentido, as mulheres muçulmanas são vítimas do véu dentro e fora da sua cultura, quer o escolham, quer o rejeitem: a sua voz e a autodeterminação sobre o corpo são sempre colocadas em causa.

É neste ponto que o Feminismo ocidental deve fazer um mea culpa. Muito embora o feminismo “branco” queira surgir como protector das mulheres muçulmanas, frequentemente assume o papel de colonizador bem-intencionado e ignora que o véu muçulmano nem sempre é um símbolo de opressão, dependendo do significado que cada mulher lhe atribui. Na verdade, há mulheres muçulmanas que se sentem livres e até mesmo poderosas ao usar o hijab, ainda mais se viverem em países ocidentais, em que a sua cultura é encarada com desdém.

Aquando da proibição da utilização dos fatos de banho muçulmanos na França – o burkini –, muitas muçulmanas deram o seu parecer de que o véu não tem de ser coercivo, mas também uma escolha.

 

Uma vez que a cultura islâmica é marcadamente misógina, a recusa em usá-lo representa uma declaração política e uma afronta para os valores da religião, mas o mesmo pode ter várias mensagens políticas: uma delas prende-se com a liberdade de escolha da mulher, em que o seu uso pode ser opressivo, se imposto pelo regime, ou libertador, se partir da vontade da própria mulher usá-lo – e nesse caso atribuir-lhe-á um significado alternativo – e outra prender-se-á com a desmistificação de que o muçulmano é terrorista e a sua indumentária um símbolo de terror. Todas estas mensagens são legítimas e devem ser respeitadas, não podendo o feminismo proibir que uma mulher utilize o seu véu como um fashion statement, sob o pretexto de libertá-la de uma cultura repressora e ajudá-la a ter uma palavra a dizer sobre o seu corpo – ao mesmo tempo em que, ironicamente, lhe diz o que vestir e lhe retira essa palavra.

Assim, forçar uma mulher a despir o véu – e puni-la caso persista – é tão repressor como obrigá-la a cobrir-se.

Novamente, impera a ignorância e o preconceito ocidental: o burkini foi criado para criar liberdade e não para a retirar. Segundo a criadora do burkini, Aheda Zanetti, este existe para que as mulheres possam usar uma roupa adequada à prática do desporto e para que possam ir à praia confortavelmente sem os incómodos que o hijab causaria. Assim, é perigoso associar uma peça de roupa a actos terroristas e, principalmente, forçar uma mulher islâmica a renunciar às suas origens por considerar que ela não pode usar algo que a reprime, esquecendo-se de lhe dar o devido lugar de fala e perguntar se, de facto, se considera oprimida.

A questão é, na verdade, bastante simples e tudo gira em torno da livre vontade da mulher – ela pode decidir usar o véu ou não usá-lo de todo, nos termos do direito da autodeterminação sobre o seu próprio corpo. Se uma mulher não deve ser punida por despir-se, outra não pode ser perseguida por escolher cobrir-se. É uma decisão que a cultura ocidental terá de respeitar e o Feminismo acolher, entendendo que é possível criticar uma cultura sem ser racista e ser feminista sem obrigar uma mulher a alterar os seus hábitos de indumentária.

Vivemos num período de mudança em que as mulheres questionam o papel que lhes é reservado pelos costumes impostos pela sua cultura e religião e decidem tomar as rédeas sobre o seu próprio destino, não se subjugando à misoginia e sexismo que controla os seus corpos.

A rebeldia e coragem de vinte e nove mulheres através da rejeição de uma peça de roupa que lhes é impingida, arriscando a prisão por uma manifestação pelos seus direitos, pode representar a possibilidade de liberdade de escolha para as gerações que virão e a rejeição do próprio medo. Resta esperar pelo dia em que o véu será simplesmente um véu.

25 de Fevereiro de 2018.

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